A Madrugada
com a tua Amada ali
passou a noite contigo
para veres um sorriso
no momento de acordar
está de mão dada contigo
não te deixará partir
iriam juntos, dizias
e agora mais do que nunca
é a hora de cumprir
é a hora de ficar
Oiço Ravel
a eterna Sagração da Vida
os segredos os mistérios
a pulsação secreta
por enquanto escondida.
Cada um leva consigo
a vida que é a sua
a vida que viveu.
As outras
já são vidas entregues,
vidas que os outros vivem
ouve-se Ravel que embala
mas na pulsação dos acordes
nada revela.
Como sempre encontro logo a música subtil que envolve os seus poemas, escondendo alguma imagem secreta, por entre versos de sabor oriental. Saem livros dizendo que a poesia é para comer. Esta podia ser gamba doce, a doçura está lá e é tão boa. Falando de sabores, na verdade eu que não sou muito comilona fico presa ao ritmo, há um lirismo cantável, nestes ritmos, como no modo de tocar que nos hipnotiza em Glenn Gould, que estou a ouvir no Mezzo. Canta as notas que toca, e o Concerto adquire outra magia. Não é Bach, é Chopin, que tocado por Gould se torna igualmente incantatório. Vão leves as suas mãos e não sabemos por onde seguem as notas.
Como estes poemas de MIGUEL SERRAS PEREIRA, um grande do nosso universo poético que leio há muito tempo, e de novo agora tenho em mãos, por gentileza sua.
Um leitor de coisas rápidas, dirá são versos em poemas pequenos, e a nossa fome é grande. Gente que engole à pressa, não saboreia, não sente como Celan, cuja poesia nós apreciamos, que o menos é mais.
No avesso da memória tanta coisa se perde, outras vezes se ganha, embora já diluída, sem lamentos, como em Tanto dá.
É o correr do tempo que por ali está a passar e nos leva para a página seguinte:
Enquanto vamos:
É só a vida tudo o que não temos
e deixamos para trás enquanto vamos
ou nada já nos falta nem buscamos
porque é a vida só o que não temos
O tempo e a vida, na inversão que se pode fazer, contrariando o Ser e o Tempo de Heidegger : o tempo é o ser que tudo atravessa, também nas pregas da memória, a vida é o tempo, retirado nas pregas, no avesso da memória.
Tão agradável a leitura que podemos repetir, sentindo na emoção o que também a nós corre na alma, não o excesso mas a míngua, mais um levíssimo acorde nos finos dedos de Glenn Gould.
Termino, lembrando ao Miguel, que me entenderá, que a memória não tem avesso, ela própria já é o avesso do que foi e será a vida...
Obrigada por esta bela leitura que me proporcionou para o fim de semana.
Origami
Chegava a Nau Catrineta
miniatura de cartão
pintada de azul celeste
com versos de um poeta
que só via Portugal
as suas brancas areias
como lençóis num estendal
estendido pelo mar escuro
que o país ainda amava
apesar de o conhecer
e repetir os defeitos
mais versos no origami
era um barquinho perfeito
já pousado no destino
dos calhaus bem escolhidos
pedrinhas soltas a eito
para indicar os caminhos
daquela nau tão esquecida
só ficara nas canções
nos versos do origami
tão pequeno e tão perfeito
num país que era tão pobre
mas que não era feio
tinha luz
tinha comida
e tinha uma luz escondida
para mostrar o barquinho
a quem nele fosse ver
o segredo das pedrinhas
equilibrando o destino
28 de Outubro, 2025
SABEDORIA
Ainda não acabei de entender
o outro poema, só aparentemente mais fácil
já tenho aqui outro que impõe uma leitura que é
ainda mais difícil, nada é fácil com a poesia
de Nuno Félix da Costa
que carrega sempre uma noção científica e ou
filosófica entre as linhas do poético.
Procuro então entender o poético.
Mas não é fácil o poético, porque também aqui
as linhas dos versos, por não ocultarem mistérios
mas revelarem o normal quotidiano do gesto
ou da situação repetida, conhecida, como o riso,
nos deixa entregues a uma perplexidade inesperada.
Como pode o banal ser poético? Onde me fixo? No título?
Sabedoria?
Um mundo tão abrangente que se torna para um leitor comum
impossível mesmo de entender. Pode saber-se tudo e isso
é Sabedoria? Ou não saber nada e isso sim ser Sabedoria?
Com a enorme gargalhada que fez a criação do mundo, quem ria afinal?
Deus ou o diabo?
E porquê querer saber, se se morre na mesma, sabendo ou não sabendo?
Nada sabemos do que é revelado depois, como não sabíamos do que
não foi revelado antes. Quem tinha rido na hora de chorar?
Faz sentido escrever, como busca de explicação?
Ou é mais sensato não fazer nada, deixar o tempo seguir
o grande devorador do passado e do presente
com todas as palavras possíveis que a seca ironia do riso
nos está a sacudir
a grande roda gigante concebida sem intenção de triturar
A CHAVE
Coração despassarado
Coração meio perdido
a bater de porta em porta
nenhuma porta se abria
ele tem a chave na mão
que deixa por vezes cair
ficando a vê-la no chão
de que serviria a chave
se nenhuma porta abria?
O coração tão perdido
e por todos rejeitado
que caminho ia seguir
se via tudo fechado?
Deixar-se ficar no chão
perto da chave caída
não era uma solução
que desse sentido à vida.
A Festa
Foram encontros tão bons!
A Susana Borges, sua primeira apresentação
Num Wedekind que eu traduzi para o José Osório Mateus, O Despertar da Primavera, numa sala emprestada, sem dinheiro, sem meios, mas com tanta imaginação e criatividade, a alegria única que só no teatro se encontra...Susana, que prazer o reencontro na Festa que a Cristina organizou!