Thursday, October 09, 2014

Rita Ferro

A MENINA É FILHA DE QUEM?
Rita Ferro, Prémio Pen Club 2012
Entre Pamuk e Rita Ferro...
É verdade que a leitura de um livro puxa outro...
Aconteceu com Orhan Pamuk, quando li RED, a seguir li SNOW e agora espero pelo BLACK BOOK.
Aconteceu com o Diário 1 de Rita Ferro, VENEZA PODE ESPERAR, que me fez andar para trás e comprar A MENINA É FILHA DE QUEM?, livro anterior e se define como autobiografia.
Rita nasceu em 1955: significa que aos vinte anos é apanhada, como tantos da sua geração na onda que só não chegou antes a Portugal por causa da Ditadura de Salazar e com o PREC rebentou pelas rochas (os mais velhos, empedernidos) e areias e lamas das almas do nosso país, com toda uma revolução de costumes que não se esperaria tão rápida, mas foi o que foi. Já sedentos, desde o Maio de 68 de Paris (apesar de tudo viajava-se....) agora podiam, uns e outros, embebedar-se à vontade. Uns de política, outros de paixão. Rita era a mais nova dos três filhos de António Quadros. E pelo que nos diz, a mais irrequieta, a mais disponível para a travessura, no colégio ou no grupo de amigos.
Não falarei aqui do seu pai, do círculo da amigos - também eu estive em casa da Natália Correia, com o David Mourão-Ferreira, a tentar não sorrir daquela apetência de Além, tão pessoana, ou dos serões no Botequim, onde tudo podia acontecer, do piano, do canto e da poesia à Revolução. Com Alberto Pimenta, lia-se o Tarot.
Com Mestre Lima de Freitas buscava-se a nova alma, o novo destino de Portugal. Na Nova Filosofia nunca acreditei muito, e a prova está à vista, não produziu os efeitos esperados. Mas respeito o esforço de repensar o país.
Entretanto, uma jovem menina, depois já mulherzinha, corria em busca do seu caminho: espreitando as amigas mais velhas, ou os amigos  mais velhos já tentando cortejar, ela observa, ela aguça os sentidos, ela diverte-se enquanto a vida e as vidas acontecem.
Numa prosa por vezes rasgada - entenda-se realista para além do que seria preciso, por vezes sugerir é mais interessante do que explicitar ao pormenor, o mundo em que cresceu, feito de boa educação (severa, claro, como se devia, ainda que hipócrita tantas vezes) de livros, boa música, poesia pelo meio, algo enfadonha, mas resiste-se e adquire-se sensibilidade, essse mundo chega até nós de modo irónico e irresistível, quando uma avó, por exemplo lhe diz àcerca de uma amiga:" essa não a traga mais, dá dois beijos e diz mala em vez de carteira!" Tão aguda, tão perfeita observação de um mundo que já tinha acabado, pela mão dos próprios, que ainda não se tinham apercebido. Conheci-o bem, e não resisto a sorrir quando a Rita o evoca, rindo também ela, com ternura.
Mas Rita vira chegar o novo mundo, e decidiu vivê-lo, todo e com sofreguidão. As casas que se perdem, se dividem, os casamentos que se fazem e desfazem, as memórias que nos tomam de assalto e sentimos o dever de recontar.
Pelo meio um país que muda: exigente, mas mesquinho, mas ainda invejoso, - como lamentam os "Pensadores" poucos, que temos, e cujo pensamento não ajudou à mudança (Não, não vou citar! ).
O que faz ela? Mulher que se diz bicho, que se diz fêmea, devoradora, que se interpela enquanto caminha e ora sai ora regressa ao que aspirava a ser, o que faz ela? Toma a vida nas mãos e luta: pelo dia-a dia-, por um trabalho que garanta independência e altiva elegância até poder libertar-se e plenamente ousar dizer o que é. Dizer é pouco? Mostrar!
Afinal a vida ensina que se é muito pouco, mas esse pouco é a nossa vida, só mesmo nossa, merecida, bem sucedida, finalmente ganha contra tudo: o que se foi, o que se é, o que se virá ainda a ser. Como em todas as vidas, houve, na sua, o sofrimento, a perda, e o desgosto.
E haverá quem sabe ainda mais.
Mas a graça com que intercala situações caricatas e divertidas com outras discretas e penosas - aquelas que se calam (Rita tem desde logo a noção de que falar nada adiantaria) - são a chave do ímpeto com que se lê esta biografia, que foi o ponto zero do Diário de Veneza.
Aqui está tudo ainda em embrião, pois a menina - sendo ou não sendo filha de quem era, carregada dos genes de uma família de criadores - podia nunca chegar a ser o que é: jovem irreverente, mulher ávida e ao mesmo tempo mãe de família, que colocou a família no centro enquanto a loucura da escrita a empurra e possui, como possessa que é da necessidade absoluta da Palavra.
Não farei aqui nenhum resumo, seria ofensivo para quem a deseje ler.
Mas leiam, porque se aprende, como ela aprendeu, e nós com ela, também a desaprender!





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