Thursday, July 16, 2015

Pessoa e Cia.

Foi um acaso.
Vim aqui, porque a letra do Facebook é mais incómoda, e também porque o FB é mais brincadeira do que outra coisa.
Fernando Pessoa, que às vezes só leio para contrariar os fervorosos- onde há excesso de fervor não há verdadeiro amor-
de vez em quando como que chama por mim.
É Mestre e Mago, embora, como Próspero na Tempestade, abdique, ou finja abdicar, do seu poder. Shakespeare estava na lista dos autores que Pessoa desejara traduzir e publicar. Fazia parte de uma lista de Grandes Autores universais, nota à mão, num papel do espólio. Também o Fausto de Goethe constava dessa lista. Para dizer o que penso:
que Pessoa, na sua devoração de leitura, assimilava e transpunha para a sua criação, temas e motivos alheios que também a ele o faziam pensar, isto é, criar.
A criação é nele uma forma de pensamento ampliado, ordenado.
É da janela do quarto que  vê o mundo. O mundo existe lá fora, como se diz em Caeiro, num campo de rebanhos abstractos, numa feira onde se inventam crianças inexistentes, ou fogem bolas que ninguém chutou.
Lá fora, a realidade.
Mas o que é a realidade, se para Caeiro não chega a ser coisa nenhuma?
A realidade é o amontoado não de sensações, mas de pensamentos na cabeça, a gaveta ideal, onde tudo se enfia, onde o mundo cabe todo inteiro.
E a que obedece o tremendo impulso de dizer? À necessidade de existir? De se sentir existindo, ainda que só em pensamento? O velho ditame de Descartes: penso logo existo?
Não, Caeiro não é o Mestre das sensações, mas Pessoa é o Mago da anulação, como se a perfeita anulação abrisse, nesse espaço do Nada, o Todo de uma consciência que se sabe existir, mas tem de ser anulada para ser deveras conhecida.
É complicado, e pouco tem a ver com a ignorância feliz da ceifeira, que é feliz  (mas quem sabe definir o que é ser feliz) porque ignora o que é e apenas se limita a ser, sem o saber...claro que é complicado, e poderíamos ficar aqui em infinita hesitação.
Mas se não fosse assim, não seria Pessoa, ainda menos Pessoa e cia. A realidade não precisa de mim, diz Caeiro. Com ou sem ele, o mundo continuará. Sabe que mente, quando exclama, noutro verso, que é fácil de definir....e afinal o que diz de si mesmo, enquanto "discute" com o filósofo (Platão, o das Ideias, o que logo demonstra que, não se tratando de Spinoza, o panteísta, é inútil tentar definir Caeiro como grande panteísta; não é):

Se a alma é mais real
Que o mundo exterior, como tu, filósofo, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da  realidade?

Se é mais certo eu sentir
do que existir a coisa que sinto -
Para que sinto
E para que surge essa coisa independente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível?

Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Coisa por coisa, o mundo é mais certo.

Mas porque me interrogo, senão porque estou doente?

Fico por aqui, pois haverá matéria bastante. Interpelando a teoria platónica, expressa no mito da Caverna, na assunção de que reais são as puras Ideias do Bom, do Verdadeiro e do Belo e o resto - o mundo à volta - apenas sombras e reflexos que impedem que se conheça a realidade, na sua essência, traz então o poeta à nossa reflexão a questão da existência-
Essência e Existência ( o Sein e o Dasein de Heidegger, que Pessoa não leu) colocam esta questão que Caeiro, ora assertivo ora dubitativo  que tentar explicar no seu poema. Centra a discussão no seu EU: mas um eu que se interroga, duvidando de si, dos outros, do mundo, define ele como um eu que está doente.
Da doença da Razão, que nada explica, e ao mesmo tempo explica tudo.
A confusão, neste momento poético de sensacionismo mal vivido por Caeiro, é confundir sensação, ou sentimento, com pensamento.
Não são a mesma coisa... O sentir de que fala, julgando que sente, é a pura expressão do esforço de conhecer, e não o de sentir. Nem ele está certo, nem o mundo é um erro, ainda que coincidente em toda a gente.
Spinoza, que Pessoa leu, falava da res cogitans e da res extensa, a matéria criada.
Essa matéria, mais ainda quando do universo se trate, poderá ser observada, admirada, descrita, digamos "vivida". Mas sobra outra, e é esse lado outro da existência ( o ente que pensa, o pensamento) que absorve e consome o nosso poeta em todas as suas variantes.
Buscará noutras esferas a música eterna de que Platão falava...e muitas vezes se lamentou de nada ter encontrado!

Num verso em que se refere ao que é o presente, "uma coisa relativa ao passado e ao futuro", que existe "em virtude de outras coisas existirem", afirma Caeiro que não quer "incluir o tempo no seu esquema".
Desliza aqui o seu pensamento para um outro tema, que não é inocente, e tem já algo de einsteiniano, na subtil relação de tempo/espaço, ou de matéria /energia.
Falando embora de coisas, com passado e com presente, repete com insistência o verbo "ver", até que o seu leitor, ou o seu estudioso, se apercebam do simbolismo que um tal verbo comporta.
Ver, isto é, ver com a clarividência dos místicos, dos alquimistas de cuja iniciação se dirá no fim que ele, o iniciado, "parte munido de olhos" (Mutus Liber) chegado ao fim do percurso.Vejamos então as coisas:

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Estamos perante um exercício de meditação, de contemplação, próprios da mística alquimia - daí a contradição de afirmar que não é ciência nenhuma. Pois não é, e recuperando ainda o Mutus Liber, o que nele se pede ao adepto é que "reze, leia, leia, leia e releia, e trabalhando conseguirá descobrir".
Indicação que no seu estudo da obra de Waite (constante da sua biblioteca pessoal) Pessoa terá encontrado muitas vezes.
Temos pois um Caeiro que não é um pastor sensacionista e inocente, que se limita a olhar, sem as contar, as suas ovelhas -pensamento.
Temos um Pensador que reflecte sobre o sentido, e não a sensação - que é o seu, o exclusivamente seu da sua vida, e  do mundo que o rodeia como se não existisse. Reflecte sobre o ser e o tempo, enquanto prefere omitir essa questão do Ser no Tempo, isto é,  da Existência, do Existir.
A consciência de existir arrasta consigo o sofrimento de se saber passado, efémero, e não perene, como se desejaria...
Mente, mais uma vez, para justificar o célebre verso, quando afirma
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar

De novo recupero um alquimista, Michael Maier, só para terminar:
"  O Vento  transportou-o no seu ventre" referindo-se ao embrião da matéria da vida.
(Emblema I, Atalanta Fugiens)

Recomendo, para leitura simples e agradável além de original, o livro aqui apresentado pelo Prof. David Jackson, que sublinha uma das características mais inovadoras (e Modernistas) de Pessoa: dentro dos limites de um determinado género literário de que se serve para a sua expressão poética, a total inversão , por via do que diz, da definição do género tal como fora entendido até ele o virar do avesso....


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