Sunday, January 10, 2016

As Rosas de Rilke

I
Se a tua frescura por vezes
tanto nos espanta,
rosa feliz,
é porque em ti mesma,
por dentro,
pétala contra pétala,
descansas.

Um conjunto todo desperto,
cujo centro dorme
enquanto os múltiplos
afagos
deste silencioso
coração
se erguem até à boca
extrema


 II

Vejo-te, rosa, livre, entreaberta,
contendo tantas páginas
de pormenores felizes
que nunca serão lidos. Livro
mágico,

aberto ao vento e que
de olhos fechados
pode ser lido...
fazendo confusão às borboletas
que saem dele e tinham as mesmas ideias.


III
Rosa, tu, coisa por excelência
completa
que infinitamente se contém
e infinitamente se dispersa,
cabeça
de um corpo ausente por excesso
de doçura,
nada te é equivalente, oh tu, suprema
essência
da estadia fugaz;
neste espaço de amor em que mal
avançamos
circula o teu perfume

IV
Fomos nós, no entanto
que te pedimos
para encher o teu cálice.
Encantada com o artifício,
a tua abundância ousou.

Tinhas riqueza bastante
para seres cem vezes tu mesma,
numa única flôr;
é como aquele que ama...
Mas não previste mais nada .

V 

Abandono rodeado de abandono,
ternura a tocar
em mais ternura...
É o teu interior
que parece
carícia permanente;

que em si mesmo se acaricia,
através do seu reflexo iluminado.
Assim inventas o tema do Narciso
cujo desejo se cumpriu.

VI
Uma só rosa, é todas as
rosas
e ainda esta: o insubstituível
o perfeito, o flexível vocábulo
enquadrado pelo texto das coisas.

Como dizer, sem ela,
o que foram as nossas esperanças,
as ternas intermitências
na contínua partida.

VII
Apoiando-te, clara, fresca, rosa,
contra os meus olhos fechados -
pareço ter mil pálpebras
sobrepostas

contra o calor da minha.
Mil sonos contra o meu fingimento
sob o qual vagueio

no perfumado labirinto.
  
VIII
Do teu sonho demasiado repleto,
flôr tão numerosa por dentro,
molhada como quem chora,
debruças-te sobre a manhã.

As tuas forças suaves
que dormem num incerto desejo,
desenvolvem as delicadas formas
entre as faces e os seios.

 IX
Rosa, ardente e no entanto
clara,
cujo nome devia ser
relicário
de Santa-Rosa..., rosa
que distribui
esse inquietante perfume de santa nua.

Rosa nunca tentada,
desconcertante
na sua íntima paz; última
amante,
tão distante de Eva, do seu primeiro
 aviso-
rosa que infinitamente possui
a perda.

X
Amiga das horas em que não resta
mais ninguém,
e tudo se recusa ao coração amargo;
consoladora cuja presença
é testemunha
de todas as carícias que flutuam
no ar.

Se renunciarmos a viver,
se renegarmos
o que já foi e o que pode
vir a ser,
não estaremos a esquecer
a insistente amiga
que ao nosso lado faz
seu trabalho de fada.

XI
Tenho uma tal consciência
do teu ser, rosa completa,
que o meu consentimento
te confunde
com o meu coração em festa.

Respiro-te como se fosses,
rosa, a vida inteira,
e sinto-me o amigo perfeito
de uma tal amiga.

 XII
Contra quem, rosa,
adoptaste
esses espinhos?
A tua alegria, por demais
subtil
forçou-te a ser essa coisa
armada?

Mas de quem te protege
a arma exagerada?
De quantos enemigos
 te livrei
que em nada a temiam?
Pelo contrário, do Verão
ao Outono, vais ferindo
os cuidados que te dou.

 XIII
Preferes ser, rosa, a ardente
companheira
dos nossos enlevos presentes?
É a lembrança
que se apodera de ti
no momento feliz que recuperas?

Já te vi tantas vezes feliz
e seca
- cada pétala uma mortalha -
numa caixa perfumada, ao lado
de uma madeixa de cabelo,
ou dentro de um livro amado
que vamos reler sós.

 XIV
Verão: ser por alguns dias
contemporâneo das rosas;
respirar o que flutua
à volta das suas almas abertas.

Fazer de cada uma que morre
uma confidente,
e sobreviver a essa irmã
noutras rosas ausente.

 XV
Sozinha, tu, flôr abundante,
crias o teu próprio espaço;
miras-te num espelho
de perfume.

O teu perfume rodeia
qual outras pétalas
o teu cálice múltiplo.
Prendo-te e tu revelas-te,
prodigiosa actriz.

 XVI
Não falemos de ti. És
inefável
como a tua natureza.
Outras flores ornamentam a mesa
que tu transfiguras.

Colocam-te num simples vaso -
e eis que tudo muda:
é talvez a mesma frase,
mas cantada por um anjo.

 XVII
És tu que preparas em ti
mais do que tu, a tua última essência.
O que sai de ti, emoção
perturbante,
é a tua dança.

Cada pétala consente
e faz no vento
alguns perfumados passos
invisíveis.

Oh música dos olhos
rodeada por eles,
tu no meio tornas-te
intangível.

 XVIII
Partilhas
tudo o que nos comove.
Mas nós ignoramos
o que te acontece.
Teríamos de ser cem borboletas
para ler todas as tuas páginas.

Há algumas que são
como dicionários;
os que as apanham
têm vontade de encadernar
todas as folhas.
Quanto a mim, gosto
das rosas epistolares.

 XIX
Propões-te
ser um exemplo?
É possível encher-se
como as rosas,
multiplicando a sua subtil matéria
que foi feita para não fazer
nada?

Pois não é trabalhar
ser uma rosa,
dirão.
Deus,
olhando pela janela,
arruma a casa. 

XX
Diz-me, rosa, como é possível
que fechada em ti mesma
a tua vagarosa essência
imponha a este espaço em prosa
os seus enlevos aérios?

Quantas vezes
finge este ar que as coisas
o furam,
ou, amuando,
se torna amargo?
Enquanto à volta da tua carne,
rosa, ele rodopia?

 XXI
Não te dá vertigens
andar à roda
do teu caule,
rosa redonda,
para chegares ao fim?
Mas quando o teu impulso
te inunda,

ignoras-te no teu botão.
É um mundo que rodopia,
para que o seu calmo
centro
ouse o redondo repouso
da redonda rosa.

 XXII
Mais uma vez sais
da terra dos mortos,
rosa, transportando
para um dia de ouro

a felicidade conquistada.
Deram licença, esses
cujo crâneo vazio
nunca tanto souberam?

XXIII
Rosa, tão tardiamente chegada,
que as noites amargas suspendem
devido à sua claridade sideral,
rosa, adivinhas as fáceis delícias
completas
das tuas irmãs de Verão?
Vejo-te durante dias e dias
a hesitar
na tua cinta demasiado apertada.
Rosa que, ao nascer, imitas
ao contrário
as lentidões da morte.

O teu inumerável estado
dá-te a conhecer
numa mistura em que tudo
se confunde,
esse acordo inefável do nada
e do ser
que todos ignoramos?

 XXIV
Rosa, teria sido melhor
deixar-te de fora,
caríssima adorável?
O que faz uma rosa, no momento
em que o nosso destino se esgota?

Não há regresso possível.
Eis que partilhas
connosco, perdida, esta vida
esta vida
que não é do teu tempo.










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